Em busca de destruir o minotauro que ameaçava a existência de
todos, Teseu se desafiou a percorrer o labirinto e nunca mais
retornar ao local de partida. Ariadne pôs-se na tarefa de coser um
fio e o entregou a Teseu. Enquanto percorria o labirinto, o fio de
Ariadne manteria o elo entre o passado e o presente, a memória que
seria evocada diariamente, o testemunho de que era preciso lembrar do
que vivera e deixara em terras firmes.
Lembrar para não esquecer. Esse deve ser o nosso exercício diário,
pois o ato de lembrar nos impele a combater os discursos retóricos
que só servem para aqueles que assumem o Estado a construir
narrativas que lhe são convenientes, e sobretudo a mentir, enganar,
tripudiar. É o que vivemos no atual momento. A decisão do
presidente da República, Jair Bolsonaro, de autorizar que as Forças
Armadas comemorem a ditadura civil-militar de 1964 é uma afronta à
memória histórica e, sobretudo, à vida de homens e mulheres que
foram torturados e seviciados. É uma agressão aos filhos de pais e
mães desaparecidos e assassinados pela ditadura. É uma violação a
nossa história, ato que deve ser repudiado veementemente pelos que
têm respeito à vida humana.
Como tem sido uma prática comum desde a campanha eleitoral, o
presidente e alguns de seus correligionários querem reescrever a
história a respeito da ditadura militar, recuperando a trajetória
de torturadores. Isso - por si - já deveria ser repudiado por
todos, pois nenhuma disputa de poder deve negar o princípio
civilizatório do dever à verdade histórica.
É preciso puxar o fio de Ariadne e trazer o passado ao presente para
lembrar de cidadãos que foram presos injustamente. Aqui, em
Juazeiro, a partir de 31 de março de 1964, tivemos a caça aos que
eram chamados de subversivos. Foi assim que as forças de segurança
local e do Estado trataram o mestre Osvaldo Gomes, marceneiro e
presidente do Sindicato dos Trabalhadores Fluviais e Marítimos, o
alfaiate Antônio Bigodinho, os irmãos trabalhadores fluviários
José e Benedito Pereira; o professor de matemática, Chico Romão; o
vereador e radialista Jorge Gomes. Assim como ocorreu em Juazeiro,
aconteceu em todo o país. Era preciso prender aquele que se julgava
“inimigo interno da nação”, invariavelmente todo aquele que se
identificava com a luta por direitos sociais.
Em comum, todos foram acusados de propagar ideias comunistas e de se
organizarem em associações de assistência ao trabalhador. Uma
retórica discursiva que ajudou as elites nacionais e militares a
ficarem 21 anos no poder. Mestre Osvaldo ficou 18 meses preso,
afastado da família e renegado socialmente. A Comissão da Anistia,
instalada pelo Ministério da Justiça, a partir do ano de 1995,
comprovou que ele foi preso, simplesmente, por ser dirigente
sindical. Foi preso porque, em uma ditadura, o direito à verdade
deixa de existir.
É o que estamos presenciando com essa decisão de celebrar os 55
anos da ditadura civil-militar. Querem que a gente esqueça que
pessoas foram mortas, assassinadas. Querem sobretudo nos calar. Mas é
preciso insistir em narrar os fatos e acontecimentos históricos tal
como eles foram para que as gerações futuras não esqueçam que
mulheres e homens foram presos, torturados, mortos. É preciso
assumir o compromisso de não compactuar com mortes e
desaparecimentos. O Estado brasileiro assumiu essas mortes e
desaparecimentos. Não há de haver nenhum Presidente da República
que nos faça esquecer. Não há de haver nenhum professor em sala de
aula reproduzindo mentiras. Façamos o exercício de não nos
perdemos no labirinto da mentira e das falsas celebrações. É
preciso retomar o fio que nos conecta ao passado, a memória e a
história de vida de cada um que morreu ou foi torturado pela
ditadura civil-militar.
Em tempo: a jornalista Karem Moraes produziu uma série de reportagens para o Gazzeta do São Francisco no ano de 2012 sobre cidadãos juazeirenses que foram presos e mortos. Foi um trabalho jornalístico inédito que narra atos de repressão promovidos pelo Estado.
Em tempo: a jornalista Karem Moraes produziu uma série de reportagens para o Gazzeta do São Francisco no ano de 2012 sobre cidadãos juazeirenses que foram presos e mortos. Foi um trabalho jornalístico inédito que narra atos de repressão promovidos pelo Estado.
Andréa Cristiana Santos é jornalista e professora da Uneb/Juazeiro