domingo, 31 de março de 2019

55 anos de uma ditadura que matou, torturou, dilacerou


Em busca de destruir o minotauro que ameaçava a existência de todos, Teseu se desafiou a percorrer o labirinto e nunca mais retornar ao local de partida. Ariadne pôs-se na tarefa de coser um fio e o entregou a Teseu. Enquanto percorria o labirinto, o fio de Ariadne manteria o elo entre o passado e o presente, a memória que seria evocada diariamente, o testemunho de que era preciso lembrar do que vivera e deixara em terras firmes.

Lembrar para não esquecer. Esse deve ser o nosso exercício diário, pois o ato de lembrar nos impele a combater os discursos retóricos que só servem para aqueles que assumem o Estado a construir narrativas que lhe são convenientes, e sobretudo a mentir, enganar, tripudiar. É o que vivemos no atual momento. A decisão do presidente da República, Jair Bolsonaro, de autorizar que as Forças Armadas comemorem a ditadura civil-militar de 1964 é uma afronta à memória histórica e, sobretudo, à vida de homens e mulheres que foram torturados e seviciados. É uma agressão aos filhos de pais e mães desaparecidos e assassinados pela ditadura. É uma violação a nossa história, ato que deve ser repudiado veementemente pelos que têm respeito à vida humana.

Como tem sido uma prática comum desde a campanha eleitoral, o presidente e alguns de seus correligionários querem reescrever a história a respeito da ditadura militar, recuperando a trajetória de torturadores. Isso - por si - já deveria ser repudiado por todos, pois nenhuma disputa de poder deve negar o princípio civilizatório do dever à verdade histórica.

É preciso puxar o fio de Ariadne e trazer o passado ao presente para lembrar de cidadãos que foram presos injustamente. Aqui, em Juazeiro, a partir de 31 de março de 1964, tivemos a caça aos que eram chamados de subversivos. Foi assim que as forças de segurança local e do Estado trataram o mestre Osvaldo Gomes, marceneiro e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Fluviais e Marítimos, o alfaiate Antônio Bigodinho, os irmãos trabalhadores fluviários José e Benedito Pereira; o professor de matemática, Chico Romão; o vereador e radialista Jorge Gomes. Assim como ocorreu em Juazeiro, aconteceu em todo o país. Era preciso prender aquele que se julgava “inimigo interno da nação”, invariavelmente todo aquele que se identificava com a luta por direitos sociais.

Em comum, todos foram acusados de propagar ideias comunistas e de se organizarem em associações de assistência ao trabalhador. Uma retórica discursiva que ajudou as elites nacionais e militares a ficarem 21 anos no poder. Mestre Osvaldo ficou 18 meses preso, afastado da família e renegado socialmente. A Comissão da Anistia, instalada pelo Ministério da Justiça, a partir do ano de 1995, comprovou que ele foi preso, simplesmente, por ser dirigente sindical. Foi preso porque, em uma ditadura, o direito à verdade deixa de existir.

É o que estamos presenciando com essa decisão de celebrar os 55 anos da ditadura civil-militar. Querem que a gente esqueça que pessoas foram mortas, assassinadas. Querem sobretudo nos calar. Mas é preciso insistir em narrar os fatos e acontecimentos históricos tal como eles foram para que as gerações futuras não esqueçam que mulheres e homens foram presos, torturados, mortos. É preciso assumir o compromisso de não compactuar com mortes e desaparecimentos. O Estado brasileiro assumiu essas mortes e desaparecimentos. Não há de haver nenhum Presidente da República que nos faça esquecer. Não há de haver nenhum professor em sala de aula reproduzindo mentiras. Façamos o exercício de não nos perdemos no labirinto da mentira e das falsas celebrações. É preciso retomar o fio que nos conecta ao passado, a memória e a história de vida de cada um que morreu ou foi torturado pela ditadura civil-militar.

Em tempo: a jornalista Karem Moraes produziu uma série de reportagens para o Gazzeta do São Francisco no ano de 2012 sobre cidadãos juazeirenses que foram presos e mortos. Foi um trabalho jornalístico inédito que narra atos de repressão promovidos pelo Estado. 

Andréa Cristiana Santos é jornalista e professora da Uneb/Juazeiro

segunda-feira, 31 de março de 2014

50 anos da Ditadura Civil-Militar de 1964

O Dever de Lembrar.
Lembrar para não esquecer.
Lembrar para que noites sombrias não mais ocorram.
Lembrar para que a liberdade esteja sempre presente

Quero começar esse debate com um agradecimento pelo convite para participar dessa discussão e reafirmar a importância de momentos como esse de partilha de ideias. Mas, antes de abordar o tema, quero pedir licença aos poetas Maurício Tapajós e o Paulo César Pinheiro para rememorar a música Pesadelo que diz o seguinte:

Quando um muro separa uma ponte une
Se a vingança encara o remorso pune
Você vem me agarra, alguém vem me solta
Você vai na marra, ela um dia volta
E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós, olha ai..

Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu espaço morto
De repente, olha eu de novo
Perturbando a paz, exigindo troco
Vamos por ai eu e meu cachorro
Olha um verso, olha o outro
Olha o velho, olha o moço chegando
Que medo você tem nós...

Esse poema, para mim, sempre teve o significado de uma evocação, uma evocação para tornar presente corpos que foram mutilados, pessoas que não mais estão entre nós, fisicamente; pessoas que foram assassinadas, outras são desaparecidos políticos. Penso que, ao refletir sobre os significados e os impactos sobre o golpe militar de 1964, nós não podemos esquecer a trajetória de pessoas, jovens, militantes de esquerda que, durante um curso de suas vidas, se doaram a um projeto político, seja em uma organização de esquerda, a um partido ou simplesmente em ações de resistência ao arbítrio e ao autoritarismo.
Sinto, e essa a minha principal motivação quando procuro refletir sobre o golpe de 1964, que temos um Dever à Memória para com aqueles que foram mortos, assassinados, bem como às pessoas que nas mais diversas situações empreenderam ações de resistência ou sofreram os impactos do autoritarismo. Como professora, jornalista que desde a graduação procurou pesquisar sobre a ditadura civil-militar e sobre os desaparecidos políticos, isso para mim é um dever, um compromisso ético com uma pesquisa que fiz e que avalio que não se acaba quando publicamos ou defendemos uma dissertação.
Particularmente, algumas questões que procurei refletir durante meu trabalho de pesquisa ainda permanecem. Embora haja pesquisas mais atuais sobre os impactos da ditadura militar, inclusive uma maior cobertura da imprensa, ainda existe um desconhecimento sobre as estratégias e ações de resistência empreendidas pelas pessoas comuns. Assim como ainda precisam ser desveladas as ações de coerção, cerceamento à liberdade individual em espaços geográficos específicos como no interior do país e nas pequenas cidades.
Durante muito tempo, consolidou-se uma operação historiográfica de que as ações de resistência foram engendradas nas grandes cidades, assim como foram menosprezados os vestígios de uma cultura política de esquerda nas pequenas cidades, ou nos grotões do país.
Também houve a construção de uma memória a partir de escritos memorialísticos que trouxeram relatos da vivência pessoal dos militantes dentro das organizações e ressaltaram episódios relativos às prisões e às torturas sofridas. Alguns desses livros, especificamente o de Fernando Gabeira, O que é isso Companheiro, e o de Zuenir Ventura,  1968: o ano que não acabou, conceberam a prática da militância de esquerda no limite da ingenuidade, ilusão, assemelhando–se a uma atitude irresponsável, “porra-louca”, como uma grande “aventura romântica” fadada ao fracasso diante dos mecanismos de repressão profissional do Estado. São os resquícios de um romantismo revolucionário que tenderia ao voluntarismo.
A memória construída dessa forma foi feita para consolidar uma transição sem grandes traumas entre os anos de ditadura e a redemocratização com a anistia política, as eleições diretas e o novo Estado de Direito. Claro, que esses livros não foram os únicos, e ainda bem. 
Outras memórias como as de Álvaro Caldas, Tirando o Capuz, e Flávio Tavares, Memórias do Esquecimento, trazem relatos que considero muito mais relevantes para entender a adesão aos grupos de esquerda armada. Essas memórias relatam a ação como resultante do envolvimento político, a participação construída em grupos e atividades que vão do grêmio estudantil a atuação na universidade, a construção de redes de sociabilidade entre militantes que sonhavam com a revolução social, com um país mais justo e que não aceitavam o arbítrio. A adesão de jovens e experientes militantes mais velhos à resistência armada e as ações de massa não foi uma decisão individual, nem resultante de um voluntarismo.
Foi uma decisão decorrente de uma cultura do autoritarismo, do cerceamento às liberdades individuais, ao pensamento livre e, sobretudo, provocada por uma política nacional baseada em uma Doutrina de Segurança Nacional, que concebia o militante de esquerda como o “inimigo interno” a ser combatido. A repressão militar foi um traço constitutivo da ditadura civil-militar brasileira, que começa com a repressão aos sindicatos da base do Partido Comunista Brasileiro (PCB) nos primórdios do Golpe de 1964 ao aniquilamento de militantes que aderiram à luta armada seja na cidade como no campo.
Como isso, não ignoro que houve também tomada de decisão motivada por uma cultura política de esquerda, de acreditar nos projetos das organizações e interpretações que os partidos de esquerda faziam naquela conjuntura da sociedade brasileira, como defender a possibilidade de uma guerra popular prolongada. Em nome desse projeto, o PC doB organizou a Guerrilha no Araguaia que resultou na morte de 69 militantes, desses 10 são baianos, e uma foi sobrevivente.

Repressão à Militância de Esquerda
No Brasil, pelo menos durante a minha formação no ensino médio, ou em textos que lemos até hoje, propagou-se a ideia de que a ditadura brasileira não foi tão cruel como a ditadura argentina. Contudo, não se pode contar mortos. Uma pessoa que foi submetida à tortura, uma prática institucional do Estado Brasileiro, uma pessoa que morreu, ou foi desaparecida, tem o mesmo significado de mil mortos, ou dos 383 mortos no Brasil. Não temos que tergiversar sobre a ditadura civil-militar, foi uma ditadura cruel, que produziu o extermínio de parte de uma juventude brasileira, que começava a participar dos processos de decisão política na sociedade brasileira, que participava da vida cultural, que eram universitários, jovens profissionais.
Tudo isso nos impele um desafio que é tentar reconstruir os trajetos e percursos dos militantes mortos, como os militantes baianos do PCdoB Uirassu Batista, Vandick Reidner Coqueiro e sua esposa Dinaelza Santana Coqueiro, Rosalindo Souza, Demerval Pereira, Antônio Carlos Teixeira e sua mulher Dinalva Oliveira, José Lima Piauhy Dourado, que deixaram a Bahia entre os anos de 1971 e 1972.  Existiram outros baianos mortos como Nelson Lima Piauhy Dourado, que deixou a Bahia no ano de 1965, e Maurício Grabois. Até hoje, os familiares buscam esclarecimentos sobre a morte de seus entendes. Apesar da atuação da Comissão Nacional da Verdade, essas famílias esperam que essas mortes sejam esclarecidas e os culpados punidos.
Por outro lado, além das mortes e desaparecimentos, também acho que se produziu uma cultura do medo e da opressão em pequenas e grandes ações produzidas pelo Estado, como a repressão nas pequenas cidades e que ainda continuam relegadas ao esquecimento. Como exemplo, a perseguição aos membros do Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Fluviais, como o Senhor Oswaldo Gomes, que ficou preso durante 18 meses; funcionários da Companhia de Navegação, como os irmãos José Benedito e Luis Benedito, os artífices e militantes do Partido Comunista, o velho Partidão. A jornalista Karem Moraes fez um trabalho pioneiro sobre essas prisões e isso é uma das funções do jornalismo, de tentar desvendar fatos e acontecimentos do passado para que eles sejam esclarecidos.
Essa tarefa se torna relevante porque existem poucos registros sobre os impactos do imediato Golpe de 64. Isso por causa da documentação que foi destruída, mas que demonstra como a repressão foi direcionada aos segmentos organizados da sociedade brasileira e classes populares, o que caracteriza o golpe como uma ação comandada por militares e forças conservadoras, classe empresarial contra segmentos avançados da sociedade brasileira, como os trabalhadores e suas organizações.
Já no período de 1968 a 1973, segundo os arquivos do Projeto Brasil: Nunca Mais, foram indiciados 75 militantes do PC do B na Bahia. Destes, 44 atuavam na capital, e 31 nas cidades do interior. A maioria era do sexo masculino (80%), com faixa etária entre 16 e 27 anos (70%), e com atuação nos segmentos universitário e secundarista (57%). Em todo o país, 3.698 pessoas foram indiciadas, sendo 259 militantes do PCdoB processados.
Parece-me que essa ação repressiva precisa ainda hoje ser problematizada, porque essa ação faz parte do que estou chamado da Cultura do Autoritarismo e do Estado de Exceção que se instalou no país. Na Bahia, no período de 1968 a 1972, podemos verificar que a ação repressiva se concentrou no combate às organizações de esquerda e também aos segmentos estudantis, que procuravam se organizar nas cidades do interior da Bahia.
Também gostaria de problematizar como certas ações de repressão reproduzem o controle social sobre atividades produzidas por jovens secundaristas e universitários que procuravam organizar as entidades de classe como Associação Baiana de Secundaristas, a União Brasileira de Estudantes Secundaristas. Essa onda repressiva atingiu organizações como o Movimento Revolucionário 8 de Outubro, Polop, Var-Palamres, PCdoB e Ação Popular.  
Entre os anos de 1969 e 1971, organizações como o PC do B e Ação Popular tiveram células nos colégios Aplicação, Colégio “Central”, Severino Vieira, Escola Técnica Federal, Manoel Devoto, Ginásio São Salvador; e particulares como Antônio Vieira, Sacramentinas, Dois de Julho e Mercês. Também havia militantes no Centro Integrado Navarro de Brito e Colégio Alexandre Fleming, em Alagoinhas.
No ano de 1971, esses jovens foram presos, alguns nem tinham 18 anos, para prestar esclarecimentos sobre militantes de esquerda. Eles ficaram incomunicáveis e sofreram tortura psicológica. Essa prisão tem um significado relevante para entender como o Estado usou o aparelho repressivo para obter informações, quase sempre sob tortura e que levaram ao aprisionamento de dirigentes políticos, o que resultaria no desmantelamento de parte da esquerda que aderiu a luta armada. Assim como, essa ação significou e teve impactos sobre a vida de jovens que começava uma militância política estudantil, alguns aderiram à clandestinidade, outros abandonaram a militância de esquerda.
A onda repressiva a célula de estudantes secundarista doo PCdoB, na Bahia, iniciou a partir de agosto de 1971 e atingiu os militantes da base secundarista. Uirassu Batista e José Lima Piauhy Dourado foram indiciados como os principais dirigentes estudantis. As prisões só se tornaram públicas no dia 15 de janeiro de 1972, quando foi divulgada uma nota do Comando de Operações de Defesa Interna (CODI-6) sobre a prisão de militantes do PC do B e da AP, acusados de promover reestruturação da ABES.
As prisões ocorreram entre os dias 30 de julho e 10 de agosto de 1971. Foram presos 16 militantes secundaristas do PC do B e 14 da AP, sendo que seis eram menor de idade. Todos foram acusados de promover reorganização de entidade estudantil extinta e com vínculos com PC do B.
Com a prisão de militantes do PC do B, os órgãos de segurança tiveram acesso ao organograma da organização, com nome das pessoas que participavam da reestruturação da ABES. Os militantes ficaram detidos na unidade do Quartel de Amaralina. Alguns secundaristas se apresentaram à Polícia Federal para prestar declarações, ao tomarem conhecimento que seu nome foi incluído como integrante da ABES ou que estavam sendo procurados pela polícia.
Durante as investigações, a tática utilizada pelos órgãos de repressão foi a de conduzir os militantes para identificar na porta dos colégios e na residência os colegas partidários com os quais tinham contato e faziam reuniões.
Uma das conseqüências da “queda” dos secundaristas foi a interrupção do trabalho de reorganização da ABES, das atividades culturais e da revitalização dos grêmios planejada pelos estudantes. A prisão em si, além de possíveis traumas psicológicos, provocou a suspensão de matrículas e expulsão de alunos dos colégios públicos.
Também houve repressão aos estudantes secundaristas em Alagoinhas. O grupo formado por 15 pessoas participava de reuniões para organizar o I Congresso dos Estudantes de Alagoinhas, realizada no ano de 70. Dois anos depois, a base chegava ao fim com o indiciamento de sete pessoas. Eles ficaram presos por 40 dias e submetidos à tortura na fase dos interrogatórios.
Também foram presos universitários da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e de Faculdade de Ciências Econômicas, responsáveis pelos contatos com os militantes secundaristas. 
Em decorrência das investigações realizadas e informações com os militantes detidos, a repressão identificou o “aparelho” onde eram impressos documentos partidários e o jornal A Classe Operária.  A descoberta da casa levou a prisão de José Duarte, militante histórico e membro do Comitê Central. Preso em outubro de 72 com 65 anos, Duarte foi levado para DOPS de São Paulo e unidades militares de Brasília, Recife (Pe) e Fortaleza (Ce) (BNM 696/73). O partido enfrentava problemas sérios de segurança com a prisão e morte dos dirigentes Lincoln Cordeiro Oest; Carlos Nicolau Danielli; Luiz Guilhardini e Lincoln Bicalho Roque. Para evitar que novas prisões ocorressem, o Comitê Central divulgou em A Classe Operária uma nota em que chamava os militantes a reforçar a vigilância.
A recomendação partidária, contudo, não seria suficiente para estancar novas prisões que se seguiram. De 1 de maio a 7 de junho de 1973, 23 militantes baianos foram detidos pelo CODI-6 e indiciados por organizar associação e realizar trabalho entre assalariados rurais nas fazendas, situadas em Ilhéus, Itabuna, Camacã e Vitória da Conquista. Entre os presos, estava Ruy Medeiros, à época advogado e funcionário da prefeitura municipal de Vitória de Conquista. Membro do Comitê Regional, ele retornara em dezembro de 1971 para a cidade de Vitória da Conquista, encarregado de fazer trabalho político legal com profissionais liberais.

Lembrar para não esquecer
Com esse breve relato, quero ressaltar a necessidade de que possamos escavar o passado, de esclarecer e de tornar público tanto as ações de repressão como as de resistências, assim como entender os significados da participação política de variados segmentos da sociedade brasileira. Porque essencialmente houve interrupção de processos de participação política, assim como – e não podemos menosprezar – os resquícios e vestígios de uma cultura do autoritarismo ainda se fazem presente nos órgão de segurança pública; ou na forma como lidamos com o exercício do poder. Embora tenhamos tido muitas conquistas como o processo democrático que começa a partir do Movimento de Anistia, os movimentos de Diretas Já! e as conquistas recentes da nossa democracia representativa.
São conquistas como essa que não podemos menosprezar. Mas não podemos esquecer que a ditadura militar instalou um regime de Exceção no país. É por isso que sempre insisto: devemos lembrar e combater todo e qualquer regime ditatorial, porque, em todo e qualquer regime de exceção, a vítima é sempre o cidadão, a pessoa comum, ou qualquer pessoa que ouse sonhar e lutar por liberdade.
Para que possamos sempre lembrar que uma ditadura militar é cruel, termino com um depoimento que sempre me sensibilizou, porque demonstra que devemos sempre combater a barbárie, ou qualquer ação que possa provocar dor ao outro. No seu livro Em busca do tesouro perdido, Alex Polari escreveu:    

[...] Eu sentira todas as coisas, enfrentara todas as escalas de dor física; optara
mal ou bem por todas as gradações da ética; descobrira que esta não era mais a
livre escolha de opções possíveis, mas um cruel masoquismo em nome da
essência, da transcendência, da História. A ética com que tive que me deparar, a
moral com que a minha geração se deparou nas câmaras de tortura foi a mesma
dos exterminados nos campos de concentração, dos condenados à morte. Que
escolha tivemos? Existiam duas dignidades. Uma que os que não foram tocados,
tiveram. E isso lhes deve ser computado: resistiram a pressões, ameaças. A outra
dos que tiveram o corpo retorcido. Ou que não tiveram essa tal dignidade. Mas
não tiveram porque o corpo foi triturado.

Muitos militantes, jovens, senhores, mulheres, crianças foram submetidas à tortura, tiveram o corpo violado, tentaram usurpar a alma, a dignidade. Em nome das vítimas, aos que foram mortos, todos aqueles que foram submetidos à tortura, grito Presente. Reafirmo, aqui, meu princípio de luta contra qualquer tipo de violação. São por essas pessoas que ainda, hoje, continuo lutando por justiça social e por uma vida mais digna. E em nome dessas pessoas, penso que temos o dever de conhecer o passado, para que a cultura do medo e do autoritarismo não seja uma ameaça, para que noites sombrias nunca mais ocorram. 

Esse é o nosso Dever: lembrar para não esquecer, lembrar para que a liberdade esteja sempre presente.

Por Andréa Cristiana Santos
Jornalista e Prof. Do DCH III


Texto-palestra para o debate 50 anos do Golpe Militar de 1964 no dia 27 de Março de 2014, no Departamento de Ciências Humanas, da Universidade do Estado da Bahia, em Juazeiro-BA.


P.S: Quem desejar ler sobre a Repressão às Organizações de Esquerda, particularmente sobre a militância do PCdoB, veja link com a dissertação "Ação entre Amigos: história da militância do PCdoB na Bahia 1965-1972". Link para a dissertação site do Programa de Pós-Graduação em História da UFBA.


segunda-feira, 8 de abril de 2013

Vaivém das palavras


As palavras sempre me seduziram. Talvez, porque elas me levassem a uma outra realidade que superava a aridez da terra onde nasci e vivi minha adolescência. No pequeno povoado, no semiárido nordestino, as palavras ora chegavam por cantorias, rezas, bendizeres, nas missões em busca de água para sobreviver a mais uma seca; ora vinham impressas em jornais velhos, curtidos pelo tempo.


Chegavam para embrulhar as compras na mercearia do meu pai, pequenos objetos, alimentos. Entretida no meio da leitura, só ouvia meu pai falar: traga o jornal, preciso embrulhar o arroz! E a reportagem com o sucesso dos Titãs seguia para a casa do vizinho.

Mesmo com atraso, os jornais traziam novidades e me faziam encontrar mundos desconhecidos. Para além da mercearia, da igreja, da escola, descobri que havia um mar de coisas a se desbravar. As palavras impressas me conduziam aos lugares que não conhecia, cidades, montanhas, a gente de toda parte... Em pleno sertão, a leitura me fazia enxergar possibilidades infinitas, todo um universo com luz, cor, cheiros e vida.

Assim, descobri a leitura, assim recriava histórias. Certo dia, li um trecho do livro de Clarissa, de Érico Veríssimo. E passei a copiar como se fosse a autora do texto, criava parágrafos, histórias vividas. Lembro que entreguei o texto a um amigo que me disse: você escreve coisas bonitas. Mas eram histórias inventadas, histórias que me permitiam criar um mundo imaginado.

Um dia, apareceu em minha casa uma raridade. O livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez. Não sei como aconteceu, mas o livro fora vendido na feira junto com os cordéis, o saco de farinha, as verduras. Deve ter sido uma das primeiras edições do livro, porque o papel não tinha qualidade, feito com páginas amareladas, era velho. E ao mergulhar na leitura, descobri que todos nós latino-americanos temos um pouco de Macondo ou desejamos que a nossa vida seja uma invenção.

As histórias da família Buenida-Iguaran pareciam ter saído do universo da minha pequena comunidade, com suas pequenas alegrias, tragédias e alegorias fantásticas. Era o povoado do Saquinho, no sertão baiano de Paripiranga, transportado para Macondo. Não era igual. Claro, era completamente diferente.

Naquele momento descobri que a leitura é capaz de nos recriar, de nos transportar, de ousar sonhar e imaginar coisas. E assim fui me encantando com as palavras, porque elas me conduziam a um mundo fantástico e me colocavam no lugar do outro.

Com o tempo, contraditoriamente, descobri que o mundo da escrita me põe medo, porque, ao colocar no papel as palavras impressas, um pouco de nós também fica. Como no espelho de Alice, no país encantado das maravilhas, tenho medo de ser capturada. E de não saber se sou real ou uma invenção. 

Andréa Cristiana

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Quereres



Não sei como, mas o desejo apareceu de repente.
Sonhou que tinha uma casinha e ela seria em frente ao mar, onde passaria
a velhice vendo o vaivém das ondas.
Confesso, endoidou-se! 
Ele na casa dos 56 decidira sonhar com o mar.
Sempre andara na roça, labutando com a terra, levantando postes de madeira, pastoreando os animais. Agora, se encantara com o cheiro da maresia. 
Como iria fazer? Nem no rio, eu o vira banhar-se. Suas mãos não conseguiriam jogar a rede, não pegariam o peixe. 
Desacreditei. 
Um dia, deixou a casa, a mercearia, os amigos, percorreu quilômetros até que colocou os pés na areia. 

Olhou
      suspirou
                  embriagou-se...

O mar ficou, o pai se foi.


Andréa Cristiana

sábado, 25 de agosto de 2012

Sobre jornal, tempo e espaço


Desde que soube que o Gazzeta do São Francisco se tornou um jornal semanal, pensei em escrever. As ideias surgiam, enquanto caminhava, andava de ônibus, ou fazia coisas rotineiras; cozinhar, comer, estudar, olhar o facebook - afinal esse hábito é quase condição sine qua non da nossa existência no mundo atual. Com a rede social, as pessoas não conversam, digitam, o toque dos dedos é a extensão do nosso corpo no mundo.

E as ideias foram se modificando: do espanto, nasceu uma tentativa de compreensão mais racional. Pensei como a relação que temos com o jornal mudou. Por mais que tenhamos nascidos no século passado onde a leitura textual era mediada pelas letras impressas, há mudanças, e já não somos mais os mesmos, as águas correm e nos modificam.

O jornal, como a própria palavra derivada do latim diurnales remete, nada mais é do que um diário, que publica aquilo que foi pescado pela corrente do tempo. Durante quase dois séculos, convivemos com as notícias impressas diariamente, embora a relação de periodicidade tenha se alternado constantemente.  E quando percebemos que essa relação com a notícia será mediada semanalmente, novos desafios se impõem à empresa jornalística, ao jornalista, às empresas que colocam publicidade e ao leitor.

À empresa jornalística, exige-se um produto de qualidade - na impressão, no oferecimento de notícias mais aprofundadas e na valorização do seu profissional -, porque se trata de um novo produto, cuja fidelização com o leitor muda. 

Ao jornalista, a perspicácia e a inteligência de fazer a notícia pensando na sua duração. O factual é imprescindível, porém com a análise e o frescor das coisas novidadeiras, do presente que se estende, ora em diálogo com o passado, ora perscrutando o futuro. Notícia velha não existe em jornalismo.  A estética é essencial, a narrativa, a criação também.  O lead – termo técnico usado por nós, jornalistas, para trazer as informações mais relevantes no primeiro parágrafo – sofre as variáveis da relação temporal e exigirá maior capacidade de entendimento do que de fato é relevante. De certa forma, isso é ótimo para que todos percebam que o lead nunca foi a escrita do que aconteceu ontem, em um dado lugar. Isso é balela. A abertura de um texto é crucial para capturar a atenção do leitor. Mas isso é apenas uma das mudanças, outras hão de vir. 

Preocupa-me pensar em um sujeito que é quase ausente quando pensamos o produto jornal: o anunciante. E aí a constatação triste: temos duas cidades com um capital econômico relevante, porém  são pouquíssimas as empresas que valorizam o impresso como veículo capaz de divulgar a marca, vender o produto ao leitor. Sem anúncios publicitários, o produto jornal perece.

Por fim, o leitor. Será que sente a falta do produto diário, mediando suas relações sociais, culturais e de percepção, inclusive, com o tempo? Ou se rendeu aos outros meios, pois já não sente falta da leitura em casa, o jornal deixado displicentemente na mesa, no sofá à espera do ato de ler em silêncio, contemplativo a qualquer hora do dia? O leitor é capaz de ler o mundo a partir de variados suportes, um veículo não exclui o outro. Mas pelo que ouvimos nas ruas, o suporte online permite uma visualidade maior. E isso é perceptível ao publicar um texto no meio online, pois o corpo do autor – e não apenas a sua capacidade de argumentar – é facilmente reconhecível. Você é parado na rua e alguém comenta: eu li o seu texto. 

É óbvio que não há nada de novo nesse comentário, apenas uma nova relação que se estabelece com a difusão da notícia. Quando os periódicos surgiram, a extensão da nossa casa era a praça, onde todos conversavam e se reconhecia quem publicava no impresso. As cidades se modernizaram, a praça não é a nossa única extensão, os jornais, inclusive, serviram para ampliar o debate público.

Hoje, a notícia se espalha e encontra inúmeros leitores. E aí se localiza outra obviedade: é o leitor a razão de existência do jornal,  não é tão-somente a redução de custos ou a adaptação aos novos tempos. Por isso, desejo vida longa ao Gazzeta como jornal semanal e peço que nos trate como leitores, pessoas que precisam de informação jornalística qualificada em qualquer suporte, como um mediador da nossa relação com o tempo e com o espaço social.

P.S: Como sinal dos novos tempos, o texto precisa ser menor. Tentei, mas foi inútil. As palavras impressas ainda clamam por mais espaço do papel.  


Andréa Cristiana Santos, texto publicado na edição do Gazzeta do São Francisco, que circula, hoje, sábado, 25 de Agosto.
Foto: Divulgação recolhida do blog Notícias do Bem -

sábado, 28 de julho de 2012

Zuzu Angel e a luta pelo seu filho


Quem é essa mulher, que canta sempre esse estribilho. Só queria embalar meu filho que mora na escuridão do mar. Nos anos 70, Chico Buarque ousou, a despeito do medo e o horror implantado pelo regime militar, falar da dor de Zuzu Angel em busca do seu filho, Stuart Edgar Angel Jones. Chico renunciou ao silêncio e denunciou o sofrimento de mães que tiveram os filhos assassinados.

Trinta e cinco anos após a morte de Stuart, a luta de Zuzu Angel foi levada ao cinema. O que há de peculiar no drama de Zuzu, corpo e alma dilacerados pelo filho assassinado covardemente, é perceber como o passado está presente nas nossas vidas. Pensar em Zuzu é relembrar o drama de outras mães que tiveram filhos mortos, cujos corpos nunca foram encontrados. É expor, aos nossos olhos, o silêncio da sociedade brasileira que apoiou o golpe militar sob alegação hipócrita de que pretendia restaurar a democracia. 

Qual democracia? Quando os militares destituíram João Goulart, em 1964, romperam com a ordem constitucional e instauraram o autoritarismo, resultando no assassinato dos que se opunham à falta de liberdade política. Como Stuart Edgar, muitos jovens aderiram ao movimento de guerrilha armada porque acreditavam que não deveriam negligenciar a coragem dos que almejam a livre expressão, ousar sonhar, ousar lutar. 

Ainda é uma ferida exposta na sociedade brasileira compreender porque jovens desafiaram o regime militar. Para muitos, eram idealistas sob o fulgor da juventude. Os militares diziam: são jovens comunistas em guerra contra a nação. Porém, como bem retrata o filme, que guerra é esta que condena à morte sem direito à defesa? Os militares não são os únicos a serem responsabilizados pelo aniquilamento de militantes. Empresários financiaram a caça aos supostos comunistas, os meios de comunicação silenciaram sobre suas mortes e se recusaram a falar a verdade. 

Zuzu Angel nos conclama a refletir porque permanece um silêncio sobre esse apoio ao golpe militar e à repressão política. A anistia política aos crimes praticados por militantes e pelos torturadores não significa que devemos esquecer o passado. Pelo contrário, o passado é algo sempre vivo. 

Para os que não querem silenciar sobre o que foi o regime militar, relembremos de um fato ocorrido em Petrolina, em 27 de maio de 1974. Neste dia, o militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) Ruy Frazão, que iniciou a militância na  Ação Popular, organização de esquerda originária dos grupos da juventude católica, foi morto, em circunstâncias não esclarecidas, quando estava em uma feira popular na cidade. Ruy, que morava em Juazeiro com o nome de Luiz Antonio Silva Moraes, foi espancado por três policiais e nunca mais foi visto. Onde foi enterrado Ruy? Quais as circunstâncias da morte? Quem o matou? São perguntas que não querem calar. 

Resta-nos indagar se não somos omissos sobre fatos semelhantes ocorridos no país e que só ganham existência para os familiares. Somos um povo sem memória, um povo que aceitou que jovens fossem mortos. Somos uma nação que se constrói sob o silêncio. Saber que um filho morreu, causa-nos dor. Muito mais dilacerante é o silêncio de não saber como morreu e quem o matou. Zuzu Angel nos convoca a sair do silêncio e a exigir justiça e transparência sobre o passado. A todos os assassinados pelo regime militar, dou-lhes minha voz e lhes digo Presente!  

P.s: Esse texto foi publicado no Gazzeta do São Francisco, em agosto de 2006. Hoje, na edição do Gazzeta do São Francisco, de 28 de Julho de 2012, a jornalista Karem Morães publicou matéria especial sobre a morte e desaparecimento de Ruy Frazão. 

Para conhecer um pouco da vida de Zuzu Angel e a sua luta em busca das circunstâncias da morte do filho, utilizando-se da sua arte como estilista e dos "desfile-protestos" para denunciar a ditadura militar, clique aqui.  

Andréa Cristiana Santos

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Lembranças de um filho


Primeiro de abril de 1964, militares com apoio da população civil destituíram João Goulart e assumiram o poder. Em todo o país, trabalhadores, sindicalistas e comunistas foram presos. Contudo, as vítimas não foram apenas militantes históricos.

Em Juazeiro, como nos contou a jornalista em Multimeios, da Universidade do Estado da Bahia, Karem  Moraes, em reportagem especial para o Gazzeta do São Francisco, que circulou ontem (26/07), o professor Chico Romão foi uma das pessoas presas, acusadas de subversão.

Chico Romão era um professor, pai de família e um homem muito conhecido na cidade. Homem com ideias firmes e princípios. Professor de Matemática, ensinava no Ginásio Ruy Barbosa, foi preso em abril de 1964 e ficou três meses detido em Salvador. No momento da prisão, muitos de sues alunos e alunas o viram sendo conduzido em uma caminhonete, exposto nas ruas da cidade, como uma forma de demonstrar para a população que, qualquer pessoa, poderia ser atingida pela repressão. Um ato para  disseminar o medo e o horror, pois essa era a lógica da Doutrina de Segurança Nacional, que foi praticada por militares e apoiada também por civis.  

A prisão de Chico Romão e de outros juazeirenses precisa ser esclarecida pelo Estado Brasileiro, por meio dos documentos policiais que contam e narram as circunstâncias e os motivos das detenções. A Comissão da Verdade, instituída pela presidente Dilma, tem esse desafio: o de que toda a sociedade brasileira compreenda e conheça o que aconteceu durante a ditadura civil-militar. É necessário que todos tenhamos o Direito à Memória e à Verdade Histórica. 

É preciso ainda que outros relatos jornalísticos sobre a prisão de pessoas na cidade de Juazeiro se tornem comuns, veiculados e transmitidos por emissoras de televisão, rádio e portais eletrônicos. Precisamos investigar o passado, encontrar familiares, selecionar informações, contar o que aconteceu. Essas informações serão relevantes para que possamos contar a história da cidade e dar a justa homenagem a quem a construiu.

Andréa Cristiana Santos

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